Sunday, April 05, 2009

Lavoura Arcaica: o eterno retorno para a casa da existência

“Estamos indo sempre para casa”...(Raduan Nassar)

Da escritura sagrada de Raduan Nassar, o diretor Luiz Fernando Carvalho (experiente diretor de minisséries da Rede Globo como Hoje é dia de Maria, Pedra do Reino e Os Maias), extraiu as sensações e conseguiu tecer um filme denso com imagens poéticas e arrebatadoras mantendo o texto de Raduan como guia condutor. De uma obra rara como a de Raduan, o longa lançado em 2001 ainda inquieta os espectadores mais sensíveis e há quem diga que é um dos filmes mais belos já feitos em terras brasileiras. 

Na tentativa de fazer o caminho contrário da parábola do Filho Pródigo, Lavoura traz a narrativa em primeira pessoa do personagem André (Selton Mello), que revoltado contra as tradições agrárias e patriarcais impostas pelo seu pai foge para a cidade desejando a todo custo um destino diferente daquele reservado para ele por sua família. 

A primeira cena desloca o espectador do seu estado natural para embriagar-se junto com André numa angustia que o toma do início ao final do filme. O som de um trem correndo pelos trilhos e a masturbação de André em seu refugio (um quarto alugado em uma pensão), onde a câmera aproxima-se da pele do ator formando uma imagem sem definição, dá o tom do que virá pela frente, reservando aos olhos fotografias semelhantes à poesia, feitas pela genialidade de Walter Carvalho.

Ao encontrar o irmão no quarto alugado, Pedro (Leonardo Medeiros) tenta a todo custo levá-lo de volta para casa, num diálogo aparentemente interminável onde toda o peso da saída do irmão é levado para fora. Utilizando imagens como a memória, Pedro conta como sua mãe ficou depois da sua partida e de como a família agora não tem mais felicidade. André ao ouvir o irmão começa um discurso doloroso do que motivou sua partida e a obra contorna a literatura de Nassar numa jornada sensível a infância de André que viveu toda sua história convivendo entre o doce de sua mãe (Juliana Carneiro da Cunha) com seus carinhos e amor e o amargo de seu pai (Raul Cortez) com suas punições e culpas, calcados na doutrina cristã e na valorização do tempo. Ensinamentos que André repudia por contrapor aos sentimentos incestuosos por sua irmã Ana (Simone Spoladore) e sua rejeição sentida desde criança diante as atitudes do pai. André tem pressa e quer ser o profeta de sua vida e crescer por seus próprios desejos. 

O pedido da mãe em fazer Pedro trazer André de volta é atendido, mas o retorno é ainda mais doloroso. O diálogo entre pai e filho na recepção deixa nítida a angustia de existir em André e o pausado discurso do pai tece fios de distância entre as gerações, evidenciando ainda mais o conflito existente. Entre as cenas mais belas do filme, a festa da recepção traz a irmã Ana dançando de branco com uma flor vermelha nos cabelos e o olhar de desejo de André enquanto afundava os pés nas folhas secas caídas sobre a terra molhada. A imagem é poesia pura e de tamanha força que conseguimos sentir as folhas entre os dedos dos nossos próprios pés. 

Além desta sensação, os aromas, a temperatura, o doce e o amargo e principalmente a sonorização do filme, envolve todos os sentidos de quem assiste. 
Por falar no som, a trilha sonora é primorosa e traz o compositor Marco Antônio Guimarães, líder do grupo Uakti, em perfeita sintonia com a obra. A música de Guimarães utiliza temas típicos da música árabe e faz uma citação d'A paixão segundo São Mateus de Bach. Marco que tem experiência em criar sons experimentados a partir de canos de PVC e objetos recicláveis conseguiu concretizar uma das trilhas mais dinâmicas e belas do cinema brasileiro.

É nessas sensações, entre o doce e o amargo e a poesia que o filme se traduz, se desfaz e toma o espectador. E vale a pena, mesmo com quase três horas de duração, ser visto e revisto diversas vezes. É um retorno para a casa de nós mesmos. 


Raduan Nassar

Comparado na literatura a Clarice Lispector e Guimarães Rosa, Raduan é um escritor raro, assim como suas poucas obras publicadas. “Lavoura Arcaica” publicado em 1975, “Um copo de cólera” em 1978 e “Menina a caminho” (contos) em 1994, são os poucos espaços onde os leitores podem encontrar seus escritos. Raduan escolheu viver isolado em seu sítio na cidade de Pindorama, interior de São Paulo, lugar onde não sai desde 1984. 
Para a autorização da adaptação de sua obra no filme “Lavoura Arcaica” o único pedido de Nassar para o diretor Luiz Fernando era que ele não aparecesse em lugar nenhum. E foi o que aconteceu, até hoje não se sabe se Nassar assistiu ao filme. 

Trecho da obra literária transposta para o filme:

"O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor. Embora, inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento. Sem medida que eu conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza. Não tem começo, não tem fim. Rico não é o homem que coleciona e se pesa num amontoado de moedas, nem aquele devasso que estende as mãos e braços em terras largas. Rico só é o homem que aprendeu piedoso e humilde a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura. Não se rebelando contra o seu curso. Brindando antes com sabedoria para receber dele os favores e não sua ira. O equilíbrio da vida está essencialmente neste bem supremo. E quem souber com acerto a quantidade de vagar com a de espera que deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco de buscar por elas e defrontar-se com o que não é. Pois só a justa medida do tempo, dá a justa 'atudeza' das coisas (Raduan Nassar)

Trechos do longa

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